Revolução Aterrada e Cinema Periférico — Intro, Pt.1, Pt.2 e Pt.3.
- Davi Benseman

- 17 de nov.
- 15 min de leitura

Intro
O conceito de revolução desde o século XVIII envolveu a tomada de poder e uma reorganização total da ordem social. Mas como pensá-la hoje em dia a partir das discussões de ecologia política, políticas raciais e de gênero, e descolonização? Como a produção artística pode nos ajudar a exercer e imaginar um mundo com grandes transformações sistêmicas? E como o cinema periférico pode ajudar a dissolver a atmosfera colonizadora do cinema hegemônico?
Tentaremos esclarecer possíveis relações entre a revolução aterrada e as demandas do cinema periférico. Passando por temas como: política moderna, indústria cultural e seus ciclos viciosos; individualização e desorganização dos corpos; criação e transformação de espaços de organização e cooperação. Abordando essas formas de revolução na micro e na macropolítica. No intuito de fazer uma ponte entre esses meios de organização social e alguns meios de organização cultural, como possíveis inspirações para um novo modelo de espaço cultural, tendo em foco o cinema de rua periférico.
Vislumbrar as possibilidades de um lugar dedicado à exibição de filmes realizados na periferia, é o que acreditamos ser, um primeiro passo para um aterramento do cinema periférico. Possibilitando não só uma maior democratização do acesso ao cinema para os trabalhadores, jovens e idosos da periferia, mas também um espaço para que cineastas periféricos possam experimentar e ousar nas linguagens e narrativas audiovisuais.
Para além dos prazeres, a ação não poderia se dar apenas a nível hedonista da classe trabalhadora audiovisual. O papel desse cinema periférico de rua seria de um espaço de reunião, debate, conversa, crítica e é claro, organização. Através da representação dos corpos e dos espaços, das mitologias que atravessam a periferia e das ancestralidades que construíram e estiveram onde estamos, antes de nós.
Vamos então dar início ao entendimento dos termos. Afinal nosso objetivo aqui é entender como o cinema periférico pode aterrar e porquê acreditamos que esse é um caminho que nós trabalhadores do audiovisual, podemos tomar em prol de uma revolução maior.
Pt.1: Se apropriando dos termos.
No dia 05/05/2021, o canal Transe, trouxe anarquistas e marxistas para conversar sobre o tema da Revolução Aterrada: Moysés P. Neto, Acácio Augusto, Leila Saraiva, Alana Moraes, Bethânia Zanatta, fizeram parte deste diálogo.
Uma pergunta logo no início da transmissão é lançada por Moysés:
“(…) vou começar pelo título [da transmissão], acho que é uma boa maneira de começar. Por que vocês acham que a revolução precisa ‘aterrar’? O quê isso significa? O quê que a ideia de revolução traz que requer ao seu lado esse complemento do “aterrar”? Quais são as questões que geram a necessidade desse complemento?”
Interessante se atentar para o uso da palavra “complemento”, que intui mais uma ferramenta de revolução. Fazendo-nos pensar que a prerrogativa dessa pergunta pressupõe inúmeras ferramentas complementares (ou não) para determinados tipos de revolução.
Para podermos entender o quê exatamente é revolução aterrada e onde surgiu pela primeira vez o uso do termo, Bethânia Zanatta explica que foi durante um tweet seu:
Bethânia explica:
“Então, a ideia na verdade era dessa “revolução aterrada”… Até acho que foi depois no tweet que o Acácio comenta e eu disse “bom, a gente pode pegar só a expressão do [Bruno] Latour e usar”. Então apesar de todas as broncas com o Latour, era a partir do livro dele que eu estava lendo, “Onde Aterrar”, que eu acabei pensando um pouco isso, (…).
Mas, eu acho que esse livro do Latour “Onde Aterrar”, embora ele seja bem problemático (…) acho [que o livro]tem elementos interessantes e tem esse chamado para aterrar. Pra mim a ideia principal que vem de aterrar, tem a ver com o que ele fala no livro, quando ele cita as ZaD’s, que seriam as Zonas a Defender, na França.E eu acho que tenho pensado muito a terra como uma zona a defender, (…) [porque] eu acho que hoje não tem como pensar nenhuma revolução, nenhuma insurgência, nenhuma revolta sem pensar na defesa da terra, e uma defesa porque nós somos a terra também.
Apesar da informalidade com que surgiu o termo revolução aterrada, a apropriação dos seus signos colabora para que possamos pensar a organização política pela ótica de uma base de encontro, afetividade e organicidade dos corpos.
Diante do cenário atual, em que enfrentamos os trágicos efeitos de uma crise sanitária global, a proposta do antropólogo e filósofo Bruno Latour de partir da perspectiva ecológica para compreender as transformações de nossa época parece inevitável.
Para combater essa perda de orientação é preciso aterrar em algum lugar, tomar uma posição a partir de um ponto. “Daí a importância de saber como se orientar, e para isso traçar uma espécie de mapa das posições ditadas por essa nova paisagem na qual são redefinidos não apenas os afetos da vida pública, mas também as suas bases”, aponta Latour.
Agora, façamos o movimento inverso das soluções, para entender um pouco melhor, quais os problemas que tornam a revolução aterrada, tão urgente.
Pt2. A Estrutura Maior das Coisas
Aqui destacarei algumas falas de Acácio Augusto, em resposta às mesmas questões: “Por que vocês acham que a revolução precisa ‘aterrar’? O quê isso significa?”, já que que ele dá um panorama da problemática na realidade atual e seus meios de transformação. Sendo essa equação igualmente aplicável no que tange o cinema periférico:
A política moderna, como um todo, tem uma obsessão pelo Tempo, pelo progresso, a própria ideia de continuidade, de eternidade da humanidade. Essa coisa meio o final de [do livro] As palavras e as Coisas: “o homem e a eternidade”.E poderia dizer que, da 2ª Guerra pra cá, ou de 68 pra cá, me parece que, a transformação (que a gente pode, talvez, chamar de Revolução) ela tá muito mais ligada ao espaço, à produção de um espaço.
Direto na ferida, com duas frases, expõe duas questões fundamentais e de extrema relevância para o cinema periférico: Primeiramente, ao citar a política moderna e sua obsessão pelo progresso e pela eternidade, ele nos permite refletir sobre as narrativas a que somos sujeitos dentro da indústria cinematográfica [aqui não nos referimos somente aos filmes americanos, mas tudo aquilo que engloba essa pasteurização estilística-narrativa em que predominam as grande produções do mundo todo].
E segundamente ao elencar a produção de um espaço (de encontro, troca e organização), para a efetividade da transformação revolucionária; Ele nos incita a lembrar do espaço cultural popular, do cinema ou do teatro de rua, e de que, pensando em cinema periférico, a demanda por espaços de exibição na periferia só cresce.
Conforme crescem produtoras e realizadores periféricos, carecem espaços para que possam exibir e estrear seus filmes e igualmente as pessoas, carecem de acessibilidade à esses espaços, em que possam encontrar entretenimento e conteúdo crítico com os amigos e família. Para além da chave hedonista, também propor a organização, divulgação e acesso à conteúdos revolucionários, sejam em livros, palestras, encontros ou é claro, nos filmes.
Para nos alinharmos nas ideias, falemos primeiro da pasteurização estética-narrativa, para depois nos atentarmos ao espaço de organização e transformação desses velhos padrões. Mas, que padrões são esses e como eles influem no espectador? Que características esses padrões narrativos carregam que nos ajudam a entender a forma como a própria narrativa histórica está sendo traçada? Como as representações do sujeito de forma individualizada e até mesmo heroicizada influenciam nas nossas desorganizações político-sociais? E mais importante: estaríamos nos tornando mais narcísicos através dessas narrativas homogêneas?
Essa estética-narrativa homogênea e hegemônica à que estamos sujeitos, funciona em nós quase como um transe hipnótico que dita qual é a regra maior: “somos parte de um sistema cíclico”. Vendendo para nós o marco-zero, como horizonte de esperança. Ou seja, um paradoxo do progresso.
O Monomito de Joseph Campbell é famoso e muito aplicado na indústria cinematográfica. Alguns o conhecem pelo termo “Jornada do Herói”, como é amplamente difundido em cursos iniciantes de roteiro, escrita de romances e até mesmo -pasmem- no marketing. A jornada do herói ou monomito é um padrão de jornada cíclica identificado por Joseph Campbell em diversas histórias antigas e contemporâneas da humanidade. Campbell, um estudioso da mitologia, investigou sistematicamente mitos e histórias de culturas distintas e traçou um “fio condutor” que estabelece uma ligação entre elas.
A cada jornada, o herói parte do seu “mundo conhecido” para um “mundo desconhecido”. Após concluir um ciclo, ele volta ao mundo conhecido tendo desenvolvido sua nova identidade, novas capacidades, com novos papéis a desempenhar e, principalmente, com muitas histórias e conhecimentos a serem compartilhados. — Alex Bretas, Educação Fora da Caixa.
Interessante observar como um objeto de análise sobre o padrão de jornadas cíclicas, se torna uma ferramenta de padronização de narrativas. Fica aberto o questionamento sobre quais características desse padrão cíclico foram elegíveis para a configuração das produções cinematográficas de massa. Este assunto por si só, daria um ensaio inteiro apenas para abordá-lo , mas farei o esforço de condensar as ideias.
A formulação mais básica que podemos reconhecer dentro do Monomito, é de que o sujeito age, passa por “dificuldades terríveis”, e volta ao ponto de origem “transformado”, “com novos saberes” desse mundo outro. Tiremos daí, duas ou mais possíveis significações:
1A primeira é de que toda mudança possível, só se dará, à nível do do sujeito. A mudança nunca estará à nível da estrutura, da realidade, do sistema. À toda essa gama de sistemas que moldam a realidade do sujeito, nomearemos de Estrutura Maior.
Podemos perceber o mesmo nas narrativas distópicas, que só conseguem se fazer imagináveis, se fizerem justificativas esquecíveis para a construção da sua realidade. Sempre nos apresentando a realidade, não como resultado de uma transformação, mas como um simulacro cristalizado, construído no intuito de fazer o sujeito mudar e se adaptar àquela realidade. Façamos uma distinção básica entre essas distopias: aquelas que são Futuros Distópicos, e aquelas que são Realidades Distópicas.
A diferença entre elas, resumidamente, é que o Futuro Distópico pressupõe um futuro da nossa realidade. Relacionando características da modernidade com suas possíveis consequências, através do uso de hipérboles. Um caso interessante é a do filme Minority Report (2002), que se passa no futuro imaginário de 2054, onde a polícia de Washington, DC, impede os assassinos antes de agirem, extinguindo assassinatos. Os crimes são previstos usando três humanos mutados, chamados “Precogs”, que “pré-visualizam” os assassinatos recebendo visões do futuro. E é através unicamente do ponto de vista do protagonista John Anderton (que se vê ele mesmo preso num paradoxo do sistema), que iremos acompanhar os questionamentos éticos desse sistema anticrime. Mas do começo ao fim do filme, não há reflexões mais profundas sobre a o uso da violência, sobre o punitivismo, sobre a vigilância, nada é questionado ou discutido à nível coletivo, ou do impacto na vida das pessoas de outras esferas sociais do universo do filme. E todo desenvolvimento do filme e até sua pequena mudança estrutural no final, são em prol da superação de problemas internalizados do protagonista. Sua motivação de mudar algo no sistema, é apenas porque ele próprio caiu em seu paradoxo da Estrutura Maior.
E o segundo tipo de distopia, chamada Realidade Distópica, pressupõe uma realidade paralela ou, independente da nossa, que não está relacionada às ações da nossa humanidade. Como é o caso da franquia Star Wars (1977), que deixa claro logo no início de cada filme com seus letreiros: “Há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante…”. Já nos afastando de qualquer relação resultante de nossas ações: “aquilo que verá, já aconteceu, senta e relaxa aí”. Mesmo que subliminarmente no filme, haja símbolos que pressupõem uma revolta contra uma Estrutura Maior tirânica, ela só se faz possível através de uma abstração máxima da sua relação com a nossa própria realidade.
Poderíamos citar também o filme In Time (2011), mais lembrado pela presença de Justin Timberlake que pela trama em si. Mas que também, aos primeiros minutos de filme, pela narração dessa vez, sugere como deveríamos interpretar a obra, na voz do próprio astro pop: “Eu não tenho tempo. Não para me preocupar com o modo como aconteceu. É o que é.”. Uma estrutura feita aos moldes do arco do personagem, à favor da transformação e adaptabilidade do Sujeito. Nunca feita para ser questionada os porquês do seu estado atual. Como se nos dissesse “está posto, não pergunte como chegamos aqui, apenas aja”. É o exemplo também de I Think We’re Alone Now (2020), Involution (2018), Her (2013), etc.
A segunda possível significação, é de que dentro dessas narrativas, há uma intensa responsabilização do Sujeito, numa tentativa de individualizar os problemas e tratá-los como exceção. Para justificar na maioria das vezes os exageros narrativos, tanto em relação à dramaticidade, quanto à espetacularização da violência, do erotismo, entre outras hipérboles. Como por exemplo Falling Down (1993), The God’s Father (1972), American Beauty (1999), etc.
A tendência nos filmes blockbuster contemporâneos de “fim do mundo” corrobora esse sentido de responsabilidade do sujeito, ao colocá-lo nos contextos mais degradantes e desumanos para construir uma narrativa que incentive a “resiliência”: a força de resistência e transformação do sujeito perante uma realidade devastada. Como é o caso de filmes como: Annihilation (2018), Anon (2018), El hoyo (2020).
Em muitos deles, a proposta para a mudança/evolução do Sujeito se dá na sua capacidade dinâmica de se auto desumanizar e humanizar em prol da sua sobrevivência, ou farsescamente falando, em prol de um bem maior/por seus semelhantes. Chegando ao ponto dessa desumanização se fazer “justificável” até pela ótica da vingança em filmes como John Wick (2014), Tropa de Elite (2007), Oldboy (2003), Cape Fear (1991), etc.
Esse exercício que propõe/provoca uma hiper-identificação com o Sujeito, nada mais consegue além de nos individualizar e relativizar ações e consequências exercidas por esses personagens, afinal, nos coloca o tempo todo de maneira explícita, os “comos” e porque deveríamos sentir empatia por esse ou aquele personagem.
Não há heróis, apenas exceções. Exceções presas à uma estrutura inabalável de domesticação do sujeito, afim de conformá-lo à realidade cristalizada. E assim que empatizados com o Sujeito, podemos enfim conformar-nos com nossa própria realidade excruciante e pensarmos individualmente: “se o aparentemente, o personagem tudo pode em qualquer tipo de realidade, o que me impede de superar minhas angústias na atualidade?”. Fazendo o espectador acreditar que a mudança está à nível do sujeito.
A terceira significação hipotética é das correlações entre o paradoxo do progresso narrativo, que seria infindo e redundante, enquanto o paradoxo do progresso no capitalismo, seria um sistema ciclicamente autodestrutivo. O quê influencia no quê? E como funciona essa dinâmica?
O progresso é um mito constantemente renovado, seus signos são mutáveis, seu domínio simbólico é controlado por aparelhos ideológicos. Tudo isso usado à favor de uma pequena fração de interessados em nos convencer que a história tem destino certo e glorioso. Nas palavras do economista e presidente do Instituto de Estudos Econômicos, Gilberto Dupas, afirma em Mito do Progresso (2006):
No alvorecer do século XXI, o paradoxo está em toda parte. A capacidade de produzir mais e melhor não cessa de crescer e é assumida pelo discurso hegemônico como sinônimo do progresso trazido pela globalização
Esse discurso dominante sobre o progresso, a que Dupas se refere, traz consigo consequências. As elites globais, são responsáveis pelo subdesenvolvimento, destruição ambiental, concentração de renda e exclusão dos seres. Ao invés de uma maior distribuição de renda, maior igualdade entre classes e prosperidade geral, assistimos passivos a “um sucateamento contínuo de produtos em escala global, (…) ao custo imenso de degradação contínua do meio ambiente e de escassez de energia”. É a escolha privilegiada, individualizada e indissociável do acúmulo de riquezas, em detrimento dos recursos naturais e do bem-estar social mais amplo.
Sob a lógica do lucro (e consequentemente do acúmulo), pensemos nas obras audiovisuais que mais se assemelham ao desígnio de produtos consumíveis. Afinal, no paradoxo da estrutura capitalista, não há mais tempo ocioso ou prazer pelo tédio. Não há tempo proveitoso e construtivo: enquanto não estamos produzindo, estaremos provavelmente consumindo. E se estivermos consumindo, provavelmente teremos dúvidas sobre “o quê” consumir. Tendo acesso interminável aos inúmeros estímulos que recebemos, a procura pelo “conteúdo perfeito”, nos toma às vezes, grandes porções de tempo. Sabendo que estaremos sendo objetos de uma competição entre produções (que está muito além de nossas escolhas, do que assistir ou não), pensemos as estratégias contemporâneas dos antigos estúdios de cinema.
Já faz algum tempo, que um número gigantesco de produções está disponível anualmente para o circuito distribuidor. Com tantas opções, as salas de exibição precisam limitar o tempo em que cada filme ficará em cartaz. Antigamente, alguns filmes eram exibidos durante anos. Esse intervalo passou para alguns meses, até chegar à média de um blockbuster na atualidade: no máximo oito semanas. Além disso, o hábito que muitos cinéfilos tinham de ver o mesmo filme diversas vezes no cinema foi se alterando no decorrer das últimas décadas, devido aos preços dos ingressos e à variedade de opções. Então, como criar novos ciclos viciosos para consumidores viciados? Criar uma dependência não é fácil, muito menos ético: aquele que produz uma nova droga, cria ou explora problemas para oferecer soluções.
Dessa forma, é notável que na própria lógica capitalista, a reprodução contínua de ciclos de escassez e abundância são parte de sua contingência. De novos produtos, surgem novos objetos de desejo. Nossas “dívidas”, antes de financeiras, estão no nível simbólico do desejo, pela urgência do novo e pela angústia da falta. Endividados pelo “novo” ou aquilo o que virá.
Como o público passou a frequentar menos as salas de cinema, muitas vezes optando por assistir filmes pela televisão ou internet, a indústria cinematográfica apostou cada vez mais em projetos de baixo risco e lucro garantido: franquias, reboots, remakes e sequências de grandes sucessos, ao invés de produções originais.
O uso da memória afetiva como ferramenta de capitalização da saudade de um outro tempo. Seria irônico, se não fosse trágico, que esse “outro tempo” sempre nos remeta ao clima político da Guerra Fria. Chegando a ser descarada a forma com que a indústria americana usa a mesma guerra ideológica num clichê “Liberdade x Autoritarismo” com antagonistas em seus filmes sempre representados como um Grande Outro a ser combatido. Um simbolismo tosco, para demandas toscas. Colocam todas as manifestações não liberais, como esse Outro, ao qual não tem diálogo, apenas negação e muitas vezes, retaliação.
Todas as vantagens tecnológicas, que permitem desfrutar de filmes e outros conteúdos em aparelhos individualizantes, tem como prerrogativa, o maior “conforto” do consumidor (leia-se corroborar para que o sujeito possa produzir e consumir mais, independendo agora do espaço físico), tornaram o ato de ir ao cinema um certo luxo, já que demanda tempo e dinheiro. Diminuindo oportunidades de se ter uma experiência coletiva no cinema.
Segundo o artigo Walter Benjamin: Narrativa e a Escrita da História (2014) de Maria Alcantara Salim, Flávia Cândida de Souza e Ernesto Charpinel Borges, Benjamin (1996) identificou como um dos principais problemas da modernidade a aniquilação da experiência coletiva e, portanto, de toda tradição comum entre os homens. Tal situação decorreu do desenvolvimento do capitalismo moderno, que inaugurou um tipo de sociedade marcada pela extinção progressiva da experiência individual e coletiva e pela imposição da busca incessante do novo. O seu tempo passa a ser o tempo da indústria, tempo que impossibilita a reflexão, na medida em que todas as energias estão voltadas para [o consumo e a] produção imediata de mercadorias, novidades prestes a se transformarem sucatas.
Para os grandes estúdios, além da necessidade de atrair grandes bilheterias, é importante investir em franquias que permaneçam populares durante muitos anos, possibilitando a venda de outros produtos — como roupas e brinquedos. Vale tudo para monetizar a atenção do público.
As franquias hoje, representam o que de mais improdutivo existe na indústria cinematográfica americana. A lógica de franquias como Marvel, Harry Potter, Star Wars, etc. é básica, pega-se a fórmula cíclica do Monomito, e repetem à exaustão, criando uma linha narrativa puramente plástica, que simula a intenção de progresso, ou de arco dramático. Dessa forma, tais filmes se resolvem em si, mas nunca se resolvem num Todo, deixando aberturas para possíveis explorações em novos filmes-produto. Essa metodologia de criação (de produtos), traz duas características mais básicas: a de que os filmes precisam ser cíclicos, ou seja, que se resolvam em si, que possam ser consumidos separada e individualmente; e em segundo, que esses ciclos possam ser repetidos ad infinitum.
Pt 3. Paradoxo da Infinitude Cíclica
Chamarei essa esquizofrenia, ironicamente, de Infinitude Cíclica. Vejamos alguém muito mais inteligente e preparado do que eu, para endossar o que quero dizer com Infinitude (qualidade do que é infinito) Cíclica (aquilo que se realiza ou retorna periodicamente). Como se, de algum modo, não fôssemos mais donos do tempo, mas sim, o tempo dono de nós. Relegados à Estrutura Maior das Coisas, e nela, crenças e ciências são uma única coisa, em prol de uma opacidade da razão humana. Ficcionalizando a nossa própria realidade.
Para o Doutor em Ciências pela USP, Thomás Haddad “(…), muitos cientistas acreditam em uma influência maléfica ou regressiva da obra de Aristóteles (…). Ainda assim, os termos em que se dão muitos dos grandes debates científicos continuam sendo aqueles postos pelo filósofo — e nada mais caracteristicamente aristotélico que os quadros em que se desenvolveu a pesquisa física e matemática acerca do infinito, seja em relação ao tempo, ao espaço, ou às magnitudes.
(…) do Livro IV da Física de Aristóteles. Lá, aprendemos que há dois tipos de infinito, por sua natureza: o infinito de composição e o de divisão. (…)Um ponto alto é como Aristóteles inverte o que ainda hoje é o senso comum: infinito não é aquilo que tudo engloba, mas aquilo a que sempre sucede mais do mesmo, interminavelmente.
Para melhor exemplificar essa citação dentro do contexto audiovisual, é só nos voltamos ao formato seriado. Alguns inclusive, se constituem de uma não-passagem de tempo e não-linearidade de episódios, assim chamadas séries não-procedurais: Simpsons, Escolinha do Professor Raimundo, Sai de Baixo, etc.
E mesmo se abordarmos o formato seriado procedural, que consiste numa progressão de episódios-evento, teremos um formato de arco narrativo repetido à exaustão: Super Natural, etc.
Essa ideia de uma estrutura cíclica que pode ser repetida incansavelmente, numa falsa progressão dos episódios-eventos, contém um elemento narrativo, sempre usado no final das tramas, no intuito de deixar em suspenso a resolução do novo conflito: o gancho.
Para falar do cíclico, vou remeter ao Eterno Retorno de Friedrich Nietzsche, “teoria de que o universo e toda a existência estiveram recorrentes e continuarão a ocorrer, de forma autossemelhante um número infinito de vezes através do tempo ou espaço infinito, ou de que há um padrão cíclico de certas recorrências.”
A Infinitude Cíclica é a qualidade com que o mercado implica as noções de progresso, em relação ao tempo e espaço: O modo como ele nos incita ao desejo de estar em números cada vez maiores de ciclos repetitivos ad infinitum. O shampoo (e os porquês de sua inutilidade) é um exemplo maravilhoso em relação à isso, afinal sua composição e finalidade, incita um ciclo preso em si mesmo. Ou então, indo mais próximo: o cigarro convencional, feito de um papel altamente inflamável, com discos que aceleram a combustão, que o permitem queimar mesmo sem estar sendo fumado. Para que fique claro ao consumidor que ele não tem poder sobre o produto que ele está consumindo.
Então essa tal Infinitude Cíclica está em nos oferecer a submissão ao ciclo, em nos vender a passividade consumista como um estilo de vida. Ensimesmando o sujeito, incitando nele o desejo de progresso dentro do sistema, da necessidade de mudança à nível do sujeito. Para que se adapte e volte às suas funcionalidades e utilidades em prol da Estrutura Maior das Coisas.
Fragmentando, alienando e eliminando qualquer força que ouse tentar mudar essa estrutura. Ou até mesmo de pensar, nos níveis mais hipotéticos, como seria o mundo sem capitalismo.




























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